Entrevista com a engenheira de pesca Beatriz Mesquita
Beatriz Mesquita é pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco, Fundaj, em Pernambuco, e doutora em Recursos Pesqueiros e Aquicultura
“A principal medida é reconhecer a pesca artesanal como uma atividade não só econômica, mas também sua importância socioambiental e cultural para a sociedade”.
Senge-PE: O que é a pesca artesanal?
Beatriz Mesquita: A definição de pesca artesanal é reconhecida pela FAO como específica de cada país, ou seja, seu conceito é dinâmico e deve ser trabalhado localmente. As mais recentes diretrizes no âmbito da FAO “Diretrizes voluntárias sobre a pesca de pequena escala sustentável” trazem em sua introdução essa mensagem. A pesca artesanal é uma pesca costeira que pode ser desembarcada e realizada com pequenas embarcações, como nos países em desenvolvimento, ou utilizar barcos de mais de 20 metros, como nos países mais desenvolvidos. Essa atividade costuma estar firmemente enraizada nas comunidades locais, refletindo ligações históricas com os valores, as tradições e os recursos pesqueiros existentes e contribuindo para a coesão social. No mundo, essa pesca captura metade de todo o pescado produzido e emprega mais de 90% da população pesqueira.
Senge-PE: Como acontece a pesca artesanal no Brasil?
Beatriz Mesquita: No Brasil, essa atividade acontece do Oiapoque ao Chuí, na costa e onde encontrarmos corpos d´água interiores como rios e lagos. No sertão nordestino do Ceará, por exemplo, a pesca é uma importante fonte de proteína. As formas variam desde a pesca desembarcada utilizando apenas as mãos, até técnicas especializadas como o espinhel, além da exigência de conhecimentos profundos que passam de geração em geração, como a navegação marítima e comportamento das espécies, entre outros. É importante notar que a pesca é uma atividade realizada por toda uma comunidade, não apenas pelo indivíduo, toda uma comunidade se envolve para que a atividade aconteça, principalmente as mulheres!
Senge-PE: Quais as principais dificuldades do setor?
Beatriz Mesquita: Apesar da grande importância da pesca artesanal para a população brasileira essa é uma atividade historicamente não visualizada pelas políticas públicas e sociedade em geral. Os números da atividade são desconhecidos, não se tem estatística pesqueira por estado/espécie nesse país desde 2007, também desde 2007 não se sabe quanto a pesca artesanal captura. Atualmente, a pesca é moeda de troca política no Brasil. Além disso, podemos citar dificuldades como os impactos socioambientais que prejudicam o setor. Toda a poluição e lixo são carreados para as águas, construção de barragens diminui a vazão dos rios, a especulação imobiliária atinge todo o litoral, monoculturas carreando agrotóxicos e produtos químicos diminuem a produtividade dos ecossistemas, o turismo descaracteriza as comunidades costeiras, e assim em diante.
Senge-PE: Como pesquisadora do setor, qual a principal dificuldade em aprofundar nas pesquisas e contribuir para o melhor desenvolvimento da atividade?
Beatriz Mesquita: A pesquisa como um todo é carente de recursos financeiros e de pessoal. A pesca artesanal, especialmente, carece de uma relação entre pesquisadores e comunidades. É preciso que haja uma maior aproximação entre quem pesquisa e os pescadores. A pesquisa precisa responder às demandas do setor. Essa é a minha preocupação. O diálogo entre pesquisa, governo e sociedade é muito tímido. Atualmente, o Movimento dos Pescadores e Pescadoras (MPP) no Brasil vem se aproximando e cobrando fortemente que a pesquisa atenda demandas reais.
Senge-PE: Qual a dimensão da pesquisa na área, a nível nacional?
Beatriz Mesquita: O Brasil carece de pesquisas na pesca artesanal. Existe uma maior preocupação no que tange as questões dos estoques pesqueiros e a sustentabilidade da exploração, o que é importante. As pesquisas socioambientais que insiram as comunidades de pescadores ainda são escassas, bem como pesquisas que utilizem o conhecimento empírico. Ou seja, as pesquisas são mais relacionadas ao pescado do que ao pescador(a).
Senge-PE: Qual a quantidade de pessoas/famílias que dependem diretamente da pesca artesanal?
Beatriz Mesquita: Existe um número oficial relacionado ao Registro Geral da Pesca que possui cerca de 1 milhão de pescadores e pescadoras cadastrados, mas sabe-se que esse número é ainda maior. Estima-se que exista cerca de 1,5 milhão de pescadores (as) e muito mais pessoas estão inseridas em outros elos da cadeia, como beneficiamento e comercialização, essas pessoas também dependem diretamente da pesca artesanal. Nas comunidades pesqueiras existem pessoas, por exemplo, especializadas em remendar redes de pesca, outros são mecânicos de motores de barcos, outros carpinteiros, todos são dependentes da pesca artesanal.
Senge-PE: Por que a pesca artesanal foi subjulgada por tantos anos?
Beatriz Mesquita: Como já foi dito existe muita falta de informação em relação a pesca artesanal. Os consumidores desconhecem o percurso percorrido do peixe que colocam em sua mesa. Muitas vezes esse peixe passa por 3, 4 atravessadores até chegar a mesa do consumidor. No mundo e também no Brasil, a pesca artesanal sempre foi vista como de subsistência, enquanto a pesca industrial foi incentivada ao longo dos anos para suprir os mercados. Com a diminuição dos estoques pesqueiros e a queda da pesca industrial (que exige muito capital), a pesca artesanal tem atraído atenção dos gestores e da pesquisa, porém essa sempre foi muito grande para ser ignorada e sempre lutou para ser reconhecida.
Senge-PE: O que são as diretrizes da pesca artesanal sustentável?
Beatriz Mesquita: As Diretrizes Voluntárias para assegurar a Pesca artesanal sustentável no contexto da Segurança Alimentar e Erradicação da Pobreza (Diretrizes da Pesca Artesanal) foram aprovadas em 2014, no âmbito da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO). São orientações internacionais de cunho técnico e político, construídas e consensualizadas pelos países membros e que devem ser internalizadas em suas políticas internas. Essas Diretrizes são voluntárias e com foco nos países em desenvolvimento. Apesar de não serem obrigatórias, existe um caráter ético embutido em toda a sua construção, reconhecida como a mais participativa da história dos documentos de pesca da FAO.
As diretrizes da pesca mostram que a pesca artesanal envolve a interdisciplinaridade e exige governança em: garantia ao território, saúde, educação, segurança do trabalho e resolução de conflitos com outras atividades. As Diretrizes reconhecem o papel dos pescadores (as) artesanais e dos serviços por eles prestados como um subsetor diversificado e dinâmico, muitas vezes caracterizado por migrações sazonais, ancorada em comunidades locais, refletindo ligações históricas com recursos pesqueiros adjacentes, tradições e valores, apoiando a coesão social.
Senge-PE: Como implementar as diretrizes no Brasil?
Beatriz Mesquita: As negociações em torno das Diretrizes não terminaram com sua adoção na reunião do COFI da FAO. O difícil andamento das negociações apenas indicou que sua implementação demandará esforços, onde mudanças de paradigmas serão necessárias, principalmente no que tange a abordagem sistêmica e ampla do documento. Mudanças legais também são necessárias e já estão em curso em alguns países como a África do Sul, Cambodia e Costa Rica. O papel da sociedade civil foi muito importante na geração desse novo conceito e deverá ser mais importante ainda na busca por sua implementação. É importante que os consumidores também sejam incorporados ao processo.
Também se faz necessário a geração de dados e acompanhamento da implementação do documento, premissa básica para uma boa governança. Mundialmente os dados oriundos dessas pescarias não são coletados separadamente da pesca industrial, isso deve ser cobrado pela FAO de seus países membros. No Brasil, o renascimento da estatística pesqueira é um dos primeiros passos a serem dados, incorporando separadamente dados de produção para a pesca artesanal, além de especificidades como gênero, idade e migração de pescadores (as), por exemplo. O país tem a chance de iniciar um novo ciclo no setor, reconhecendo e valorizando o importante papel da pesca na sociedade, inserindo os direitos humanos no contexto da governança da pesca artesanal.
Senge-PE: Quais medidas poderiam ser tomadas para melhorar as condições da pesca artesanal?
Beatriz Mesquita: A principal medida é reconhecer a pesca artesanal como uma atividade não só econômica, mas também sua importância socioambiental e cultural para a sociedade. As políticas públicas precisam ser integradas, seguindo as orientações das Diretrizes da pesca. Não podem ser focadas apenas na produção como foi pensada historicamente, devem ser focadas no desenvolvimento dessas comunidades. A sociedade não conhece a importância dessa atividade tão importante para a produção de alimentação saudável, se faz necessário também uma ampla divulgação das questões inerentes à pesca para a sociedade.
Senge-PE: Qual a situação das mulheres na pesca artesanal?
Beatriz Mesquita: As mulheres estão presente em todas as atividades que se relacionam com a pesca. Além da realização da própria atividade, quando muitas são pescadoras de mariscos e crustáceos, realizam atividades de beneficiamento e comercialização. Também atuam com seus parentes homens em várias atividades. Em Canavieiras-BA, por exemplo, é muito comum a prática da pesca em casais, seja para a pesca de aratus e caranguejos como a pesca embarcada em seus estuários. Por outro lado, as políticas públicas não reconhecem o trabalho das mulheres na pesca em sua maioria, principalmente as políticas da saúde. Existe hoje no Brasil um enorme esforço sendo realizado pelos movimentos sociais e pela pesquisa para mostrar a importância do trabalho das mulheres na pesca, exigindo seu reconhecimento. Nas Diretrizes da pesca as questões de gênero foram tratadas de forma transversal sendo prioridade em todas as discussões. Além das mulheres é importante lembrar também que a juventude na pesca e em suas comunidades precisam de atenção.